Além das migalhas

Ilha de Cadaqués, Mar do Mediterrâneo, 26 de agosto de 2019.

… Sim, meu amigo, volto a lhe escrever mais uma, e uma segunda, e uma terceira vez – talvez na terceira margem do rio –, em profunda reverência à nossa filosofia anacrônica, marginal, boêmia, banida pelo formalismo por ser viva demais, e tampouco compreendida na rasidade. Em meu exílio há um pouco de vinho, um pão que como aos pedaços e uma brisa que vem do mediterrâneo todas as noites. E quanto ao pão, mais me agrada é vê-lo sendo consumido aos poucos em cima da mesa.

Outra coisa também há: nosso martelo não pára de bater. Muito tempo já se passou, mas aquela pergunta – por que a fizestes?? – não me deu descanso um dia sequer até ontem, pontiaguda, férrea, bola incandescente de aço atravessada na garganta: impossível cuspir, impossível engolir!…

Mas ontem, dando de comer pedaços daquele pão a uns peixes vagabundos que moram num lago aqui perto, uns peixes que disputam pela força, através da força, as migalhas do pão – pleno exercício da vontade de potência! –, ontem atirei para longe aquela interrogação!

Como, me pergunto agora, como pode ter sido que ao longo de todos estes anos de esforço não havíamos visto a solução da questão bem debaixo dos nossos narizes?? Não, meu amigo, não há outra explicação: estávamos ouvindo com os olhos e enxergando com os ouvidos.

Antes, porém, só um devaneio: nesse lago havia flores de lótus que nasciam do fundo lamacento, umas ainda submersas e fechadas, outras já quase trespassando a superfície do lago e ainda umas belas que já estavam completamente desabrochadas para o sol.

Entre elas, como um bobo, havia um peixe estranho. Ele não disputava o pão que eu jogava. Ele não usava da força, e devia ter muita, pois era bem graúdo. Se chegava até ele um resto de migalha, ele comia. Se não chegava, ele ficava lá assim mesmo, nadando entre as flores de lótus. Parecia estar satisfeito, completamente satisfeito na sua plenitude. Além da força, além da migalha, esquecido de si mesmo, um tolo, um espantalho.

E se aproximando dos peixes que disputavam os pedaços de pão que jogava, veio silenciosamente pela margem um gato com olhar decidido. Claro que eu me interessei pelo que se desenrolava, e continuei no meu papel de atirar migalhas. E o gato foi então pegando um por um e comendo todos os peixes, grandes ou pequenos, tanto os que estavam na superfície quanto os que estavam um pouco mais profundos. Neste momento, tanto os peixes fracos quanto os mais fortes eram… – fracos. Depois o gato olhou friamente para mim e foi embora, sem agradecer por eu ter atirado as migalhas para que ele pudesse fazer sua refeição.

Mas voltemos à nossa questão, pois sei que deves estar impaciente. E, falando nisso, ainda acredita em destino? Afinal, estar além das migalhas não é coisa nem para os fortes e nem para os fracos: impossível engolir, impossível cuspir…!

Gustavo Mokusen.

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