O rio

V

Em mim não há mais onde procurar, então o que me guia não é mais meu, e assim pouco a pouco deixo a correnteza me levar. Minha guerra é não guerrear, minha batalha é não vencer, minha conquista é me entregar. Sacrifico a minha vontade, e submeto-me, e prossigo com ombros e pernas. Suporto e caminho, desiludo-me; já não posso nem mais sonhar e nem também acordar, nem perder e nem ganhar. Nada nunca foi e nunca será meu, e isso mostra apenas que o rio corre e não cessa. A foz, as margens, o leito, os afluentes, tudo isso é o mesmo rio que ao mesmo tempo nasce e ao mesmo tempo é abocanhado pelo mar. O início, o meio e o fim, tudo isso é simultâneo, é instantâneo, é completo, e é inútil contrariar. Tudo se move em direção ao misterioso agora, começo e desfecho de si mesmo, mesma porta de entrada e de saída para o mesmo lado do inexplicável Universo que é sempre isso mesmo. Não me tenta mais a ilusão de procurar abrir e fechar essa porta para tentar sair por onde entrei, pois o rio me fala que ele é, ao mesmo tempo, tanto a margem de lá quanto a de cá, e suas águas lentas, suas corredeiras, os redemoinhos, os solavancos, as piscinas calmas, as partes turvas e as partes claras, tudo isso são insinuações do efêmero e do passageiro que me dizem: as águas se transformam e, ainda assim, o rio permanece o mesmo, pacificado, completo e perfeito em sua ação.

Gustavo Mokusen.

Uma consideração sobre “O rio”

  1. Este texto traduz de forma muito clara os efeitos do mundo globalizado e informatizado sobre a humanidade, todos os dias assistimos o avanço tecnológico nos tornando cada vez mais ilhas em nós mesmos, vivemos cada dia mais entranhados em nosso mundinho particular e esquecemos que aqui estamos para apreciar o belo, usufruir do puro, agradecer por cada novo amanhecer e, acima de tudo, não esquecermos de olhar para o outro que está bem aqui do lado.

    Parabéns grande amigo! Que você tenha um dia iluminado.

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